Nota de Repudio

Nota de Repúdio Sobre a Live Realizada dia 25/08/2020

A live foi feita junto aos alunos e alunas da Graduação do IESA

A Direção do IESA torna pública a moção de repúdio elaborada pela professora Rusvênia Luiza B. R. Silva, coordenadora do Curso de Licenciatura em Geografia, relativa aos acontecimentos registrados durante a live organizada para discussão com nossos estudantes sobre o retorno às aulas.

A moção de repúdio pode ser lida aqui. Esta também reproduzida logo abaixo.

 

----

NOTA DE REPÚDIO SOBRE A LIVE REALIZADA JUNTO AOS ALUNOS E ALUNAS DA
GRADUAÇÃO DO IESA

Meu nome é Rusvênia Luiza Batista Rodrigues da Silva. Tenho 41 anos. Há mais de 15 anos sou professora universitária. Inicialmente fui docente na UEG e na UFT. Atuei no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE), onde ministrei aulas em todos os níveis de ensino, dos anos iniciais ao mestrado, por quase 10 anos. Também fui coordenadora institucional do PIBID – Programa Institucional de Formação de Docentes numa das gestões da professora Sandramara como Pró-reitora de Graduação. Atualmente sou professora do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA). Coordeno o curso de Licenciatura em Geografia (2-2019/1-2021) e o Grupo Veredas, vinculado ao Laboratório de Geografia, Criatividade e Arte. Oriento trabalhos de conclusão de curso, pesquisas de PROLICEN e PIBIC, mestrado e doutorado.

 

Desde o início do confinamento realizo o que denominei “jornada única” de trabalho, ou seja, estou diariamente com os meus filhos em casa e ao mesmo tempo em que cuido das tarefas domésticas e maternais sigo com o trabalho acadêmico. Oriento os alunos e as alunas; respondo aos e-mails da coordenação; participo de reuniões diversas e encaminho as demandas das funções que exerço. Além disso, ministrei uma palestra em um evento virtual organizado pela UFBA; emiti inúmeros pareceres a revistas e institutos federais; produzi artigos e organizei cursos. Um deles foi o curso Para entender o Brasil, com aulas proferidas pelo Prof. João Alberto da Costa Pinto, da Faculdade de História e outro, que também destaco, foram 4 lives denominadas O papel da universidade frente ao avanço do fascismo, com professores de diferentes unidades acadêmicas cujas aulas podem ser acessadas por meio do youtube.

 

Essas atividades tiveram cerca de 90 alunos em média, cada uma delas. A mobilização exigiu além da organização (emissão de certificações, inscrições, divulgação), a criação de links e uma espécie de aprendizado “na prática” de estabelecer a comunicação – comunicare, estar em comunhão, à maneira possível, diante do cenário de terror que nos ronda. Ao longo desse período pandêmico me sinto ansiosa e preocupada com o futuro dos alunos e alunas das universidades e escolas públicas do Brasil. Pessoalmente enfrento diariamente essa conjuntura: participo do comitê de arrecadação de alimentos e doações da UFG direcionando para pessoas vulneráveis inúmeras cestas básicas, roupas e sapatos. Procuro estar atenta aos sinais dos alunos e alunas que me procuraram na e fora da coordenação, de modo a acolher e encaminhar suas demandas. Por esse motivo organizei junto aos outros coordenadores do IESA uma live de acolhimento que ocorreu hoje, a primeira sessão, para tirar dúvidas acerca do ensino remoto e ouvir as demandas dos estudantes.

 

Organizamos a live usando a plataforma do google meet e divulgamos os endereços nos e-mails, páginas oficiais e conta oficial do instagram. Antes do horário previsto, 9h da manhã, entrei na sala e fiquei aguardando a chegada dos estudantes. Fiquei muito feliz em ver que tivemos cerca de 60 pessoas na sala, com certa variação e, ainda mais feliz em rever os alunos que “abriram” a câmera onde foi possível falar um pouco da nossa saudade.

 

Em certo momento da reunião tivemos a interrupção de uma pessoa que parecia estar usando o celular ao mesmo tempo em que ouvia a reunião. O microfone da pessoa estava aberto. Pedi a pessoa, cujo nome e foto estavam disponíveis, que, por favor, desligasse o seu microfone. Tentei explicar que usar o celular e ver a live não era possível, sugerindo que ele pudesse “sair da sala” e retornar após condições para isso, já que a reunião foi gravada e será disponibilizada. Após várias tentativas de que ele/ela assim o procedesse, ouvi uma frase: “não me retira da sala, Rusvênia, sua puta”.

 

Entendo que a frase é uma ofensa não apenas pela palavra “puta”, Mas pelo que ela significou naquele contexto: pela presença de todas ali, das outras mulheres como eu e, principalmente, pelo peso histórico que esse tipo de xingamento sugere, corriqueiramente usado para desvalorizar, ofender, humilhar e inferiorizar as mulheres. A tentativa de diminuição da mulher por um comportamento de conotação sexual faz parte de um quadro mais amplo de machismo e misoginia, onde a reputação da mulher, ainda hoje, é fruto de olhares e de julgamentos alheios. As formas de regulação dos corpos e o significado da sexualidade regulado por “leis culturais”, ou seja, ser puta assumiu em cada momento da história uma função política própria.

 

Em um texto que gosto muito chamado As fortalezas de Satanás, no livro 1 – A formação da classe operária inglesa (A árvore da liberdade), Thompson diz que os habitantes dessa “fortaleza” são as prostitutas e taberneiros, os que, dentre outros, se recusavam a evangelização passiva e patriótica, amplamente articulada ao processo ativo formador da classe operária. Considerando que os pobres “sem casamento”, as mulheres indecentes e imorais eram por esse motivo aquelas que não se curvavam ao estado de coisas, se esquivavam aos olhos moralizantes e praticavam crimes contra a “propriedade”. Ser “puta” é, assim, revolucionário.

 

Mas não creio que o meu algoz tenha lido Thompson. Nem Judith Butler e tantos e tantas outras autores a autoras que eu poderia citar aqui. Nem que conheça Gabriela da Silva Leite, uma prostituta da Boca do Lixo que estudava Ciências Sociais na USP, criadora da ONG Davida e que lutou para regulamentação da profissão das prostitutas e que, inclusive, promoveu ainda no final dos anos 1980, um Encontro Nacional de Prostitutas. A todos os presentes na live estava claro que a única motivação ali, além de atrapalhar a reunião, era puramente sexista.

 

Apesar do meu lugar de mulher e professora, dessa posição de conforto que possuo com o meu status acadêmico, fui ofendida, ou seja, sou vulnerável. O ofensor ou a ofensora não titubeou: não ofendeu aos outros professores homens presentes. Não considerou essa possibilidade apesar de estarmos todos ali, no mesmo “espaço”.

 

Escrevo essa carta breve como nota de repúdio dada à violência verbal e simbólica que sofri. Na nossa cultura ainda é comum a autoafirmação da mulher por meio da não-sexualidade. Sou mulher, tenho corpo, sou ser sexual e político. Até que eu deseje a minha sexualidade não é pública. Na UFG exerço a função acadêmica, sou docente, coordenadora e professora. Ocupome desses lugares com dedicação e responsabilidade. Usaremos a gravação e os regimentos da universidade para localizar e tomar as providências cabíveis.

 

Por esse motivo organizarei uma live para tratar desse assunto. E não vou perseguir ninguém, mas exigo desculpas e retratação pública a frase proferida. Enfim, não me calalão, não nos calarão!


Rusvênia Luiza B. R. da Silva, Goiânia, 25 de agosto de 2020, 13h43.

Fonte: Direção do IESA

Categorie: NOTÍCIAS fixa

File correlati Taglia Firma digitale del file
NOTA DE REPÚDIO SOBRE A LIVE REALIZADA JUNTO AOS ALUNOS E ALUNAS DA GRADUAÇÃO DO IESA 72 Kb 099ea2c914a4f35825408772ff70f0ec